A coisa no pé da escada
Por Humberto Lima
@humbertolima_escritor
Arte - Adriano Siqueira
May desceu a escadaria do casarão de pedras antigas
O fog londrino trazia o cheiro pastoso do esterco dos cavalos e outros cheiros desagradáveis do East End
Ela jogou o conteúdo do balde de excrementos, contribuindo com o cheiro nauseabundo
Foi quando notou a coisa pela primeira vez.
Se encolhia entre as sombras e sua risada parecia um crocitar de corvo.
May sobressaltou-se ao ver olhos humanos na coisa e correu para dentro do casarão, as crianças sentadas em volta da mesa e ela lhes serviu mingau de aveia.
Sentia o olhar queimando sua nuca e acabou saindo da casa no calor de setembro.
Londres estava mais silenciosa do que ela se lembrava naquele ano do Senhor de 1666.
A coisa se arrastou no solo, deixando um rastro de sangue coagulado e fuligem.
- Meu Deus! O que te fizeram, pobre alma?
A coisa articulou algumas palavras desconexas
- O incêndio... Foi o grande incêndio!
May deu um passo atrás.
- Que incêndio? Eu não lembro de incêndio algum!
A coisa se arrastou das sombras, parcialmente queimada. Seus braços e pernas derretidos como cotos de velas e o rosto consumido em partes.
A mulher reconheceu aquele rosto, era o rosto dela própria.
- Não! Não! Tu és algum demônio? - perguntou May de maneira enlouquecida.
A criatura crocitou, cuspindo sangue espesso que soltava fumaça de tão quente.
- Na verdade, você está se olhando o espelho.
May se deu conta então que o incêndio devastava Londres e ela delirava no quarto do casarão ao lado dos órfãos queimados.
A coisa morta era ela mesma em seus últimos momentos de vida.
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