ArTe - Adriano Siqueira
Como seria o diálogo de um psicanalista com um homem jurando ser um vampiro? E se ele for capaz de desafiar a própria percepção da realidade?
Boa leitura! E feche as portas da melhor forma possível!
Aproveite a leitura!
Lord Dragon
CLÍNICA
— Sabe do risco que corre?
— Posso imaginar!
— De jeito nenhum!
— Olha, minha carreira foi pro buraco!
— Considere-se sortudo por seu sangue não estar junto!
— Desde quando se considera vampiro? Quer dizer… Foi transformado, algo assim…
— Dúvida das minhas palavras, percebo bem! O ceticismo não é uma ferramenta tão eficaz! Sei daquilo que falo!
— Me pegou! Na verdade não acredito numa palavra! Respeito a crença dos outros, apenas isso! Muitas vezes criamos barreiras fantasiosas onde experimentamos os desejos mais profundos!
— Acredita que sou falsário?
— Creio na necessidade da construção de personas, como máscaras! Deseja sentir-se especial nesse mundo insano e aparentemente sem sentido!
— Faz tempo que nega dessas possibilidades?
— Ei, não inverta o jogo! Quero ajudá-lo a largar as drogas e as ilusões!
— E quem disse que utilizo drogas?
— Negar é o maior indício!
— Alimento-me do sangue dos vivos! Nada mais é capaz de saciar-me!
— Hematofagia! Percebi quando virou aqueles vidros de sangue goela abaixo!
— Mesmo assim, está aqui, falando comigo! Se é corajoso ou louco… Gostaria de saber a real motivação!
— Agora esconde-se numa profundeza! Te vi caído, desolado e morto de fome! Deixe-me ajudá-lo!
— Condenei a alma! Como espera me ajudar?
— Sou psicanalista, e não padre! Já vi os piores casos no meu consultório! Acredite-me, não me assusto fácil!
— Então, trata de loucos, psicopatas, assassinos e toda sorte de desequilibrados mentais!
— Nem sempre! A maioria apenas perdidos, desamparados. Seu caso aparenta se encaixar neste!
— Ah Ah! Doutor, subestima minhas habilidades?
— Claro, suas habilidades! Conte-me delas!
— São tantas, nem sei onde começo!
— Resposta interessante! Assim, descarta a necessidade de provar e ao mesmo tempo, deixa a incerteza! Nesse ponto, resguarda sua fantasia, e se assim o fizesse, entraríamos num impasse!
— O assustaria em pouco tempo! Seus pesadelos tomariam a mente!
— Pois bem! Cada vez mais curioso de saber da sua vida!
— Incrédulo até o fim? Posso rasgar esse véu!
Derrubar os pilares da compreensão universal!
— Evite se desviar do propósito original!
— Perdoe-me! Guie-me, doutor! Onde começo?
— Onde tudo começou! Diga seu nome!
— Essas táticas funcionam com seus pacientes? Não prefere que eu diga com um jogo? Um puzzle talvez?
— Por que teme contar seu nome?
— Não temo por mim! Nada tenho a temer além do tédio! Você quem deveria se preocupar!
— Serei franco, rapaz! Minha casa foi hipotecada pela terceira vez! Ganho uma merreca ultimamente. E por que? Com meu conhecimento tornei-me um solucionador tão eficaz, e curei pessoas em mínimas sessões! E fui ganhando cada vez menos!
— Dinheiro pra mim não é problema, doutor!
— Estou diante de um bilionário, agora?
— Obtenho dinheiro de múltiplas formas! Claro que entendeu como!
— Matando-os, sim! Sugando o sangue deles! Interessante! Devo temer pela vida?
— Seria sensato!
— Lisonjeado pela alta estima, rapaz! Prefere ocultar seu nome? Sem problemas!
— Mesmo? Posso começar quando as luzes se afastaram e me cerquei das trevas! Nevava bastante, folhas quebravam ao tocá-los…
— Hum… Aceita um cigarro?
— Obrigado! Sempre apreciei essa marca… Prosseguindo… Corria até a choupana adiante! A madeira mastigada pelas brocas no verão, transmitiam padrões irregulares na polpa! A fechadura rangia na ferrugem misturada ao gelo! Um toque e a maçaneta caiu! Diante do portal, a lareira crepitava tímida, uma figura sombria ao fundo!
— Quem era?
— Alguém que se foi há tempos!
— Sente algo ainda?
— Há segredos a se guardar!
— Compreendo! Vamos prosseguir! Talvez haja algum sentimento a ser decifrado! Um motivo pra criação dessa fantasia!
— Se assim prefere… Os cabelos envoltos em panos sóbrios! No esforço de manter-se aquecida, tragava quantos cigarros fossem precisos! Três ou quatro maços por dia! Bebia tudo que contivesse álcool!
— Diz como se fosse até mesmo beber de veículos automotores?
— Não duvidaria! Arriscava tudo em apostas
ilegais, sejam canastra ou rinha de galos! Feições sofridas no rosto!
— Uma mulher?
— Exatamente. Tão bonita e com problemas mentais! Ouvia vozes, mandando-a cometer atos odiosos! Numa vez, foi induzida a decepar um de seus dedos com um facão de cozinha! Raspou a cabeça com navalhas, seus cabelos demorariam a emergir! Além disso, sentia prazer em enfiar agulhas em sua pele!
— Tudo isso antes de você virar vampiro?
— Bem antes… Dê-me outro cigarro!
— Sorte a sua não se preocupar com a saúde!
Afinal, já está morto, não?
— Chega a ser tedioso! Praticamente nada pode me ferir de forma grave!
— E quanto à água benta, orações, alho, cruzes?
— Nem mesmo fogo!
— Bom, se me permite acrescentar! Atualizemos a persona, não? Afinal, são novos tempos!
— Desconfiado daquilo que ouve! Permanece na ignorância e não ultrapassa o limiar! Até o momento o poupo! A maioria dos mortais jamais saberão! Abençoados serão em nada saber! Nem precisam!
— Sou um cientista da mente! Meu propósito consiste em ir além da superstição e cruzar o desconhecido! Acha mesmo que ameaças pueris me tornarão crédulo? Não, meu amigo! Jovem, a quem pensa enganar? Deveria receitar-lhe remédios fortes para a sua depressão! E diga-me seu nome… Apenas quero ajudá-lo a livrar da loucura!
— Quem será o verdadeiro louco? Onde se encaixa a sanidade? Doutor, deveria saber a resposta! Todos possuímos um pingo de insanidade, basta apimentar! E minha conhecida picava o próprio corpo com agulhas de costura! Um dia envolveu as costas com laços de cetim, e os escondeu sob o espartilho. Sua beleza a enojava, fazia cortes em seu rosto. Tentei ajudá-la, trazendo até a ferrovia, onde na infância brincávamos! Quem sabe novos ares a acalmariam!
— Podia buscar um especialista ou interná-la no sanatório…
— Não havia algum em que confiasse! Ouvi relatos daquilo que faziam com os doentes! Davam surras, sessões de torturas cruéis, amarravam os internos com cintas para darem choques elétricos em todo o corpo, inclusive o cérebro! A forçariam manter os olhos abertos sem piscar por horas, enquanto rodariam figuras num quarto circular e hermético! Humilhações, má alimentação, lobotomia…
— Tempos sombrios! As coisas melhoraram! Estamos no século XXI, era das tecnologias emergentes!
— Parcialmente! Criaram novos métodos mais sutis e tão cruéis quanto! Midiática, especialismo, pretensão doutorada, falácias…
— Está desviando novamente!
— Tem razão! Notei o seu interesse em meu relato, embora, se questione se algo é real!
— Deixe-me adivinhar… Consegue ler mentes!
— A mente é profunda, com torres superficiais! Joias e ouro encerradas no inconsciente!
— Não me respondeu de forma direta!
— Exato, o fiz com parábolas! Ultimamente ignoramos as sutilezas das palavras, buscamos o óbvio, atentos a entendimentos dúbios e inúteis!
— Sente-se capaz de captar os pensamentos como os sinestésicos veem a música?
— Diria mais como um observador numa janela! Alguns transparentes outros opacos!
— Quais outros poderes?
— Agora fostes generalista, doutor! Com poderes se refere ao que?
— Você sabe, rapaz. Habilidades sobre-humanas!
— Aí que está! Vemos tais habilidades em todo canto, numa frequência nublada aos demais seres! Para os insetos enxergar ou perceber o infravermelho é trivial, enquanto que ao humano é sobrenatural! As leis são as mesmas aqui e além!
— Vosso conhecimento é admirável! Devo enfatizar, no entanto, o quanto não me surpreende!
— Doutor, sinto sua ânsia e desânimo ao plano material! Preocupado em questionar-me daquilo que não deveis saber? Faça a pergunta caso esteja pronto!
— Novamente bloqueia meu auxílio! Não quero “entrar nesse mundo”. Entenda, pra mim é tolice, bobagem… Essas sensações e manias o tornaram presunçoso! Continue dessa forma e irá para um beco!
— Obriga-me a discordar de vosso entendimento! Estamos todos nesse mundo, como camadas da cebola, uma realidade inserida na outra e assim por diante…
— Mas, o que foi isso? Estou… Sangrando? Como ocorreu… Como fez isso…?
— Na verdade é simples! Antes que eu explique, deveria tratar esse braço!
— Como assim? Aaaargh!!!
— Percebeu? Enquanto você filosofava e negava tudo aquilo exposto, tratei de arrancar seu sangue em inúmeros pontos. Em outras palavras… Está próximo da morte!
— Dor horrível! Você… Você me hipnotizou com seu papo estranho, aproveitou e me atacou sem eu perceber!
— Algo assim!
— Não há nada incomum nisso! Usou facas… Seu manejo com elas é notório!
— Tenho garras, piores que facas!
— Vejo-as compridas, agora entendo! Deixou-as crescer ao natural!
— Ah Ah Ah! Que divertido vê-lo negar até o fim de que falo a verdade! Aguentará até quando, doutor?
— Hunf! Moleque perturbado! Malditos filmes e livros sobre vampiros, distorceram sua percepção! Insano, perigoso, sem dúvidas. Conceber como sério tua fantasia quebraria os alicerces da sanidade!
— Efêmeras bases! O medo as ergueu, o desespero as cimentou!
— Aaaaarrrrrgggh!!! Quando atingiu meu baço?
— Há segundos!
— Maldito seja, começo a duvidar de que você esteja aqui! Estou em meu quarto, dormindo feito pedra! Sim, é isso!
— Escolhestes esse desfecho! Sua arrogância o cegou pros propósitos originais da ciência! Averiguar, testar, comprovar antes de tachar como ignóbil!
— Não desejo morrer!
— Ninguém ajuizado quer! Todos morreremos, apesar de tudo! A dama de preto ergue sua foice independente de sua vontade! Qual a diferença de agora pra daqui há anos?
— Sou jovem, tenho família, filhos…
— E casa, contas no exterior, e terá um neto em breve! Sim, sua filha carrega um bebê, maravilhoso e saudável! Pena que não conhecerá!
— Devo aproveitar a vida, meus últimos momentos! Preciso vê-los!
— Posso devolver seu hálito de vida! Curar suas feridas! Desde que me ofereça seu bem mais precioso!
— Minha carreira é uma merda! Tenho dinheiro, carros, chalé nas montanhas…
— Hunf! Isso não é nada interessante!
— Então, fique com as milhas aéreas, planos de saúde, senhas e cartões de Banco.
— Ainda desconhece ao que refiro!
— Estou casado com uma muquirana, meus cães me estranham! Minhas amantes só querem joias e vestidos caros! Fora isso, me sobra…
— Seu intelecto, eu o almejo! Desfaça dele e o pouparei! Preço pequeno pra salvá-lo!
— A mente não… Tudo menos isso… Não… Não… Heim? Onde estou?
— Shiiiiu! Está morrendo… Sorte a sua que o encontrei! Confie em mim, sou seu amigo!
Contos de Suspense e Terror, da Zine Independente do autor Lord Dragon.
Este é o décimo primeiro volume da série de contos escritos e editados por Lord Dragon, pseudônimo de Thiago de Paula.
O conto foi publicado originalmente no livro “Contos da Madrugada”, pelo “Clube de Autores” em 2018.
Somos os seres responsáveis por nossos pensamentos? Estamos mesmo no século das luzes e do entendimento? O quão efêmeras são essas bases, capazes de ruir com um apenas uma criatura das trevas a desafiar a percepção?
Carpe Noctem!
Instagram @lorde.dragon
Nascido em 30/01/1984 no Rio de Janeiro. Seu pai Áureo incentivou a ler e escrever livros e sua mãe Márcia sempre aconselhando nos percalços da vida.
Publicou três obras no Clube de Autores : Contos da Madrugada, Contrato e Poesias Sombrias. Colaborou com uma poesia denominada "Pensamentos de Vidro" pela empresa de Informática em que trabalha, dois contos pela Darda Editora, "Pesadelos Escarlates" e "Bruxas", três contos pela Dark Books, "Eles Existem", "Bestiário" e “Chamado das Sombras” e um pela Círculo Soturnos, denominado "Antologia Vampírica II".
Ama astronomia desde criança, videogames, animes, rock, música gótica e sombria, música clássica e new age. Casado desde 2013 com Marta e tem um filho de 4 anos chamado Gabriel.